Reflexões acerca da privatização da Educação no Brasil
- universidadepopula6
- 16 de dez. de 2024
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Profa. Dra. Erika Porceli Alaniz (UEMS) *
No bojo de seu processo expansionista, o capital defronta-se com a crise estrutural ao incrementar a tecnologia em detrimento do trabalho vivo e, como consequência, há a queda tendencial da taxa de lucro que, nesse momento histórico, apresenta-se como crise de acumulação. Nessa medida, adentrar novos mercados para que os capitalistas das organizações transnacionais alinhadas aos organismos multilaterais, sob hegemonia norte-americana, possam sugar a liquidez dos demais países periféricos é uma estratégia para contrabalancear a queda tendencial da taxa de lucro.
Nessa perspectiva, a educação é concebida como um nicho de mercado até então pouco explorado pelo empresariado, mas que se apresenta como oportunidade de lucratividade garantida e sem risco, uma vez que a educação básica diz respeito a etapa da escolaridade obrigatória destinada a todos que demandarem e cujo acesso foi em grande medida democratizado, portanto a oferta gratuita de todos é dever do Estado. A pesquisa de Moreira; Nogueira e Borges (2019) apontam que os business da educação atuam no mercado financeiro e são organizações transnacionais que operam em escala mundial. Entre essas organizações estão: o Sistema Educacional Brasileiro (SEB) de Chaim Zaher, que vendeu a participação no grupo Estácio para o fundo americano Advent por mais de 400 milhões e decidiu investir no ensino básico; o SEB fez aquisições de escolas em Goiânia em um processo que iniciou desde 2017; Rodrigo Galindo, do grupo Kroton e CEO, criou uma holding em busca de investimento nessa modalidade de ensino que afirma ser a educação básica um grande investimento; a rede Saber conta com uma rede do sistema Pitágoras desde 2017 e obteve um faturamento de 118,9 milhões com investimento na educação básica, tendo avançado para o Estado de Vitória.

A privatização da educação no Brasil é paulatinamente aprofundada, sendo que, em um primeiro momento, surge alterando a cultura institucional das instituições educativas e a política educacional pela implantação de critérios gerencialistas advindos da administração empresarial e, sucessivamente, por meio de convênios estabelecidos entre o ente público e o privado, transfere para os Institutos e entidades empresariais a organização da Educação do sistema público de ensino. No atual patamar de avanço da privatização, há a transferência direta da gestão das escolas públicas para as instituições privadas por meio de contrato estabelecido com as empresas que adentram o ramo educacional.
Após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, houve a hegemonia dos quadros privatistas na composição do CNE, no Ministério da Educação com Mendonça Filho e a disputa no parlamento em favor aos representantes privatistas representados pelo “Todos pela Educação”, fator que contribuiu para ampliar e aprofundar os processos de privatização tendo como epicentro o Ensino Médio por meio da Lei 13.415 (Brasil, 2017). Essa reforma foi continuada pelo governo ultraneoliberal e conservador de Jair Bolsonaro, o qual deliberadamente ataca a educação pública, tanto objetivamente, ao combinar o corte de recursos das instituições federais, o estabelecimento de teto de gastos para as políticas públicas sociais e a continuidade das reformas privatista na Educação; quanto, ideologicamente, pela disseminação de mentiras e campanha de difamação da Universidade pública como promotora de balbúrdia e, por meio da vazão ao Programa Escola Sem Partido, criando um clima persecutório e de denuncismo do que se denominou de “marxismo cultural” no currículo e contra os docentes das escolas públicas.
Entendemos que a razão principal da reforma do ensino médio é viabilizar, de modo mais abrangente, a entrada do setor privado na educação pública, embora apareça revestida do discurso de tornar o ensino médio atrativo aos estudantes por meio da flexibilização curricular e, com isso, conter a evasão e modernizá-lo em consonância às exigências do mundo do trabalho contemporâneo. Nesse ínterim, retira-se a obrigatoriedade da oferta regular das disciplinas das áreas científicas destinadas à formação geral para incluí-las como componente curricular, assim como utiliza-se parte da carga horária dessas disciplinas para ministrar o conteúdo “Projeto de Vida”, o que significa o rebaixamento e aligeiramento da formação da juventude, impedindo-a de acessar a formação científica e mesmo de se qualificar para os contextos de trabalho complexo.
Ainda, a reforma do ensino médio institui itinerários formativos, sendo um deles o itinerário voltado à formação técnico-profissional. Além da reforma curricular, a Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) também altera as regras de financiamento da educação pública e possibilita o repasse dos recursos públicos ao setor privado, uma vez que parte da formação dos estudantes da escola pública passa a ser realizada por instituições privadas.
No Estado de Mato Grosso do Sul, é evidente como a reforma do ensino médio possibilitou a atuação do setor privado. Em 2021, cria-se o Projeto Primeiro Passo pela SED/MS, o qual se destina a organizar a oferta da Educação profissional no sistema estadual de ensino para a oferta dos Itinerários formativos técnico-profissionais. Nesse processo, estabelece-se a parceria com o Instituto Itaú e o Instituto Pirce, os quais incubem-se de organizar o processo para a definição desses itinerários, bem como proceder na sistematização por meio da construção do Guia de Definição da Oferta (Mato Grosso do Sul, s/d). Nota-se que o Instituto Itaú vendeu para a SED o serviço e a tecnologia que inclui: a equipe técnica, a pesquisa de mercado com o uso dos instrumentos de coleta e análise dos dados e os apresenta, de forma sistematizada, em um Guia de Definição de Oferta (Mato Grosso do Sul, s/d). Nesse Guia, há o curso técnico-profissional que deve ser ofertado pelo sistema de ensino em cada município do estado.
Podemos inferir que o Instituto Itaú não ofertou apenas a tecnologia para a pesquisa de mercado, mas definiu a formação técnico-profissional a ser oferecida pelo sistema estadual de ensino de Mato Grosso do Sul à classe trabalhadora, utilizando-se do fundo público para isso. Essa forma de se estabelecer a parceria entre o público e privado indica que o setor privado decide sobre o rumo da educação nos sistemas de ensino enquanto o estado financia esse serviço. Torna-se evidente que setor privado concebe o sistema público de ensino como um nicho de mercado a ser explorado em várias frentes, sendo a parceria um meio promissor para escoar o orçamento público para as grandes corporações privadas, como o Instituto Itaú.
Outra via de acesso dos entes privados ao recurso público contida na oferta dos itinerário técnico-profissional diz respeito às parcerias estabelecidas com as instituições formadoras, como o Sistema S. De acordo com o Diário Oficial do Estado n. 11.118/2023 (Mato Grosso do Sul, 2023), no Termo de Convênio n. 32.882/2023, a SED estabelece a contratação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC) para ofertar o itinerário técnico profissional decorrente da reforma do Ensino Médio, repassando o valor de R$ 960.000,00 (Novecentos e sessenta mil reais) a ser liberado em 06(seis) parcelas por parte da concedente, para o período de 30/03/2023 a 24/03/2025. Em 2023, a SED/ MS estabeleceu parceria com o SENAI, SENAC, SEST/SENAT para ofertar os itinerários técnico-profissionais.
A forma como os itinerários formativos técnico-profissional têm-se configurado no âmbito da reforma do ensino médio, em que o Estado de Mato Grosso do Sul é um exemplo ilustrativo, sinaliza o desmonte do serviço público e da sua estrutura de oferta ao não propor construir a infraestrutura material e tecnológica para abrigar a educação técnico profissional, a contratação de professores apenas em caráter temporário pelo regime de CLT e não por concurso público, como expresso na Constituição Federal de 1988, em concomitância, constituiu-se um canal de repasse para que os institutos privados captem o recurso público, os quais foram conquistados nas lutas de entidades educacionais, estudantes, educadores pelo direito à educação de qualidade e pelo aumento do orçamento público para essa finalidade.
Nesse caso, ainda que sejam fundamentais a conquista do Fundeb permanente (2020), parte desse orçamento beneficiará o grande capital. Assim, o empresariado na educação assume hegemonia em duas dimensões fundamentais na educação, qual seja, no destino do recurso público e no desenho do projeto formativo da futura geração da força de trabalho a ser explorada por meio da definição do perfil do trabalhador (des) necessário ao mundo do trabalho precário.
Em consonância, a experiência do estado de São Paulo mostra que a implementação do itinerário técnico-profissional na rede pública estadual de ensino também ocorreu com base na privatização, terceirização e precarização do trabalho docente, como apontou o artigo de Andrade (2024) a respeito da pesquisa de Evaldo Pioli, professor da Unicamp. De acordo com Andrade (2024), a Secretaria de Desenvolvimento Econômico repassou R$ 33.266.803,34 para 6 instituições terceirizadas implantar o itinerário formativo técnico-profissional por meio do programa Novotec. Os contratos dos docentes admitidos por essas empresas terceirizadas ocorriam de 3 formas, a) em regime bimestral como autônomo; b) intermitente -regido pela CLT; e c) plantonista- para assumir ausências dos professores titulares. É evidente que a flexibilização nas formas de contratação tem em vista minimizar os custos com a força de trabalho e aumentar a lucratividade das empresas contratantes, o que culmina na intensificação da exploração e na precarização do trabalho docente, contrariando, inclusive, o que reza a Constituição Federal de 1988, como já indicado.
O colunista Sczip (2024), do jornal Brasil de Fato, traz dados sobre o processo de privatização das escolas que comprovam a precarização dos trabalhadores da educação, o aligeiramento do ensino por meio de plataformas EAD e a captação de vultosos recursos públicos pela iniciativa privada. No Paraná, a terceirização do serviço de apoio escolar custou aos cofres públicos 114 milhões a mais do que na forma de contratação anterior pelo serviço público e, ainda, reduziu 50% dos funcionários. Assim também, ocorre com a aprovação, em 2024, do projeto de privatização das 200 escolas públicas que gerará o impacto de 1,4 bilhões.
Assim como em Mato Grosso do Sul e São Paulo, no Paraná a implantação do itinerário formativo técnico-profissional foi tercerizada para uma Universidade privada que ofertou cursos para 20 turmas em formato EAD e contou com apenas um estagiário de nível médio com remuneração de R$ 640,00 por 20 horas trabalhadas, apesar do poder público ter despendido R$ 38, 4 milhões com esse contrato. Outra forma profícua de captação do recurso público pela iniciativa privada tem sido a aquisição de plataformas digitais de aprendizagens, no caso Paraná, o Jornal Brasil de Fato apurou o gasto em torno de 100 milhões.
O montante de recurso público transferido à iniciativa privada significa um ataque aos direitos sociais conquistado historicamente pela classe trabalhadora, portanto é uma afronta ao direito à educação. Ao invés da população se constituir em um sujeito de direito social, passa a ser uma consumidora da mercadoria educação, cujas escolas são organizadas como empresas para competir pelos clientes com mais recursos. Essa lógica aprofunda a segmentação das instituições de ensino e reafirma a profunda desigualdade social, acentuando a oferta da escola pobre para o pobre e melhores escolas para aqueles que podem pagar por elas. Vale lembrar que as experiências internacionais, a exemplo do Estados Unidos e Chile, demonstram como a implantação dessas práticas neoliberais destruíram a educação do país e deterioram ainda mais o ensino, como apontou Ravitch (2011).
Nessa perspectiva, há o desmonte do sentido e da possibilidade de oferta de ensino público por meio da gestão democrática, que envolve a participação da comunidade nas decisões fundamentais da unidade escolar desde a forma de organização didático pedagógica até a estrutura organizacional dessas instituições. Assim, os recursos públicos que deveriam ser aplicados para a melhoria de infraestrutura adequada à escola de qualidade, em melhores salários para docentes e funcionários escolares, assim como em serviços definidos pela comunidade, é captado para o aumento da lucratividade de corporações privadas. É urgente a união e mobilização dos educadores, estudantes, Universidades, sindicatos e os demais defensores da escola pública contra a barbárie da privatização da educação no Brasil!
Referências
ANDRADE, R. O. Privatização avança nas escolas públicas após reforma do ensino médio. Humanamente: divulgação científica em Humanidades, 2024. Disponível em: file:///C:/Users/User/Desktop/Privatização% 20Escola%20Pública/Privatização%20avança%20nas%20escolas%20públicas%20após%20reforma%20do%20ensino%20médio%20-%20Humanamente. Acesso em: 02.12.2024
BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p.1, 17 fev.2017.
MATO GROSSO DO SUL. Extrato do Termo de convênio nº 32.882/2023-Processo nº 29/012463/2023. Diário Oficial do Estado do Mato Grosso do Sul. Campo Grande, MS, n.11.118/2023, p.39, 30 mar. 2023.
MOREIRA, J. G., OLIVEIRA, M. E. N., BORGES, R. M. (2019). Relação público privado e precarização do trabalho: duas faces da mesma moeda. Germinal: marxismo e educação em debate, 11(1), 126–138. Disponível em: https://doi.org/10.9771/gmed.v11i1.31807
MOTTA, V.C.; FRIGOTTO, G. Por que a urgência da reforma do ensino médio? Medida provisória nº 746/2016 (lei nº 13.415/2017). Educ. Soc., Campinas, v. 38, nº. 139, p.355-372, abr.-jun., 2017.
RAVICTH, D. Vida e morte do grande sistema escolar americano. Porto Alegre: Sulina, 2011.
SCZIP, R.R. A quem interessa o modelo de educação pública implementado no Paraná por Ratinho Jr. Jornal Brasil de Fato, 2024. Disponível em: https://www.brasildefatopr.com.br/2024/06/05/a-quem-interessa-o-modelo-de-educacao-publica-implementado-no-parana-por-ratinho-jr. Acesso em: 02.12.2024.
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Professora efetiva do curso de Pedagogia da UEMS, Unidade de Campo Grande. Doutora em Educação pela UNESP.
Texto contundente!