Saúde mental indígena
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- 16 de dez. de 2024
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Por Lupin Marques Louback (UEMS) *
Última modificação: 15/12/2024
Em todos os momentos da história do Brasil, há uma marcada exploração e genocídio dos povos indígenas. Eles sofrem principalmente devido à expropriação de suas terras ocasionadas pelo agronegócio - seja na monocultura da cana-de-açúcar, seja do café, seja da soja atualmente - sendo vítimas de dezenas de massacres, tanto de sua população quanto de sua cultura. Em todo o Brasil, esses povos têm sido expulsos de seu lugar de pertencimento, sofrendo várias formas de violência e, não raro, até mesmo homicídio. (MATO GROSSO DO SUL, 2011). De acordo com Balestrery, Going, Pacheco (2020), retomando Frantz Fanon em Medicina e Colonialismo, isso implica que os povos originários ainda sofrem disparidades no cuidado à saúde, os quais se relacionam a determinantes estruturais da saúde, extremamente vinculados a um legado traumático do colonialismo que gera um ciclo sistematizado de violência e desconfiança, o qual requer combate conjunto entre os povos originários e indivíduos de demais etnias.

No estado de Mato Grosso do Sul, essa situação é ainda mais exacerbada, uma vez que o número de assassinatos de indígenas nesse estado supera o total de assassinatos de indígenas ocorridos no restante do país. A situação indígena no estado é tão grave que pode ser comparável a um quadro de guerra, superando, inclusive, o valor relativo de indivíduos assassinados durante a guerra do Iraque (MATO GROSSO DO SUL, 2011). São dezenas de indígenas privados de suas terras e culturas, assassinados, ameaçados e expostos à extrema violência.
Tal situação de barbárie social, em si, já é capaz de gerar uma crise de identidade, a qual altera o estado emocional dos indígenas e influencia no aparecimento de patologias comportamentais, como depressão, alcoolismo, drogadição e suicídio. Somam-se a essa questão, o preconceito, a falta de perspectiva e o desemprego, o que acaba por acentuar ainda mais essas patologias mentais, fazendo-as crescer de forma exponencial (OLIVEIRA e ROSA, 2014, p. 481-495). Paredes, Yarce, Aguirre (2020) ressaltam que a etnicidade, na América Latina, configura um crítico determinante de pobreza, exclusão social e desigualdade, além de poder constituir uma situação de vulnerabilidade duplicada, tendo em vista que esses grupos minoritários requerem uma atenção muitas vezes especializada. Assim, a forma como a sociedade lida com essa minoria étnica seria um importante fator de adoecimento.
Tendo em vista o cenário de queimadas, que prejudica a qualidade do ar e, portanto, propicia o aparecimento de doenças respiratórias, especialmente em populações mais vulneráveis (SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE, 2024), o relatório de abril de 2020 da Fiocruz ressalta a vulnerabilidade dos povos indígenas às infecções respiratórias agudas, tendo em vista que vírus respiratórios em comunidades indígenas apresentam elevado potencial de espalhamento, resultando em altas taxas de ataque e de internações, com potencial de causar óbitos (BRASIL, 2020). A FIOCRUZ (2020) afirma também que mesmo fora de epidemias, as infecções respiratórias agudas são as principais causas de morbidade e mortalidade em indígenas. Outrossim, no caso das infecções respiratórias agudas, determinantes sociais estão fortemente associados a esse perfil.
Quando se leva em conta o cenário supracitado, torna-se relevante avaliar a relevância do cuidado com a saúde mental das populações indígenas uma vez que, além de serem mais afetados do que os não-indígenas por infecções respiratórias, também encontram-se impedidos, pela usurpação de suas terras pelo agronegócio (DULCE, 2019), de exercerem suas coletividade cotidiana — expressa na forma de rezas, danças, cantos, momentos de diálogo nas casas de reza de cada comunidade, grandes reuniões familiares, rituais de despedida, rituais de comemorações — , fator que intensifica os problemas de saúde mental. Não obstante, quando falamos sobre os conceitos de saúde mental e de adoecimento psíquico, geralmente nos referimos a concepções pré-definidas da cultura ocidental acerca desses termos o que, muitas vezes, não se aplica aos elementos da cultura indígena (FERREIRA, 2011).
No sentido de favorecer a cosmovisão de um povo sobre seus processos de saúde-adoecimento, Menéndez (2003), traz o conceito de autoatenção, definido como as práticas e representações que as pessoas utilizam para lidar com questões de saúde, sejam reais ou imaginárias, sem o envolvimento direto de profissionais da saúde, e que são influenciadas tanto pelo indivíduo quanto pelo grupo social (MENÉNDEZ, 2003). Assim, Menéndez defende um modelo de atenção que se constrói e reconstrói continuamente, muitas vezes unindo concepções que, a princípio, possam parecer opostas e antagônicas, mas que para um indivíduo ou grupo aparecem combinadas na forma de práticas terapêuticas. É através dos atores sociais que o modelo de atenção deve ser pautado, definido e redefinido, fazendo emergir novos modelos, mais adaptados à realidade do processo de saúde-doença desses sujeitos.
Todavia, outro problema a ser enfrentado quando se fala da saúde mental dos indígenas é a questão da estigmatização da saúde e do adoecimento mental. As doenças mentais e seus tratamentos por psicólogos e psiquiatras, ainda são, muitas vezes, entendidos como uma circunstância exclusiva dos “loucos”. Segundo NUNES e TORRENTÉ (2009, p. 101-108):
Processos de estigmatização são referidos e concebidos como estando entre os maiores empecilhos no avanço da atribuição de um outro lugar social à loucura e do exercício de cidadania dos loucos, projetos centrais da Reforma Psiquiátrica. O lugar social da loucura, a despeito de um certo deslocamento produzido, permanece ainda, de modo geral, aquele de situar-se à margem da sociedade.
Para Foucault (1978), a loucura foi gradualmente submetida à razão até o ponto em que atualmente nos encontramos: a medicalização da loucura. Sem embargo, essa medicalização apenas representa uma imposição do saber médico e científico sobre a individualidade daqueles que se encontram em sofrimento psíquico, um monólogo da ciência e da medicina em detrimento a um diálogo entre o louco e sua cultura e o médico e seus conhecimentos científicos. Não obstante, é preciso avaliar a possibilidade de uma aliança entre o saber médico-científico e o saber cultural indígena para um enfrentamento mais adequado dos problemas mentais que afligem esse segmento social.
Com o avanço das queimadas sobre as populações indígenas e as violências oriundas do conflito de terra, é notável a existência de uma piora nas condições de saúde mental. Mitchell et al (2021), por sua vez, analisam o acesso à justiça como um meio de acesso a outros direitos, inclusive o direito à saúde e à vida, concluindo que as populações originárias encontram uma lacuna de justiça; tal brecha é exacerbada pelas diversas outras formas de preconceito, como o sexismo, racismo e outras formas de marginalização; ou seja, quanto mais o indivíduo se enquadra em minorias sociais, mais marginalizado se torna e, assim, mais apartado da justiça o indivíduo figura-se.
Já Viscogliosi et al (2022) faz uma associação entre a solidariedade intergeracional e saúde mental. Brandão, Souza (2010) evocam Edith Brown Weiss (WEISS, 1997 apud BRANDÃO, 2010), que definiu responsabilidade intergeracional como “Cada geração humana recebe da anterior o meio ambiente natural e cultural com o direito de usufruto e o dever de conservá-lo nas mesmas condições para a geração seguinte”. Viscogliosi et al (2022) concluem, assim, que esse amparo entre as gerações e o bem-estar psíquico estão relacionadas, ou seja, conforme a integridade ecológica é mantida, a saúde mental é preservada e o adoecimento é prevenido.
Nesse sentido, é válido elencar determinantes de saúde que são promotores do adoecimento, como a falta de acesso a moradia, transporte e alimentação adequados. Ademais, os impactos da colonização como a perda da linguagem e da cultura e os luto e traumas constantes foram um desafio à qualidade de vida. Tal condição encontra um embate radical na efetivação do isolamento de alguns povos originários, no sentido de recusa às violências do Estado, de modo que a manutenção dessas formas de viver fortalece a democracia, enquanto assegura a pluralidade da sociedade e garante uma perspectiva de futuro (RIBEIRO; APARICIO; MATOS, 2022).
Ademais, outra forma de combater o adoecimento mental, como proposto por Sheppard e Broughton (2020), consiste na utilização da música e da dança no sentido de criar um capital cultural e social que leve à prática de exercícios físicos dentro da coletividade, estimulando as interações sociais e a saúde psicossocial de modo a reduzir a sobrecarga sobre os sistemas tradicionais de saúde, por meio do uso de práticas integrativas e complementares em saúde que servem de estratégia de cuidado integral, levando em conta a complexidade desses indivíduos ao mesmo tempo em que amplia a oferta terapêutica e respeita os desejos dos sujeitos individuais (MURICY; CORTES; PINHO, 2023).
Quando partimos para as considerações finais com base no contexto supracitado, percebe-se a importância da cultura desses povos na manutenção do seu bem-estar psíquico. No entanto, é fundamental ressaltar a influência da colonialidade que impõe a hegemonia do eixo ocidental sobre outras cosmovisões, centralizando e legitimando o conhecimento e as formas de saberes no modelo positivista eurocêntrico e promovendo um epistemicídio das contribuições de outras etnias (Farias, 2022). Nesse sentido, não é possível pensar em cuidados com a saúde mental de indígenas sob a ótica tradicional, focando na medicalização do adoecido, sem levar em conta todo o contexto de lutas seculares e violências diárias que compõe uma forma de imposição colonialista sobre as concepções desses povos, estratégia que é eficaz em provocar anulação cultural e mais adoecimento. Logo, torna-se necessário compreender que o reconhecimento dos valores coletivos dos povos originários é o mínimo necessário para começar a se pensar em estratégias de cuidados com sua saúde mental.
Referências:
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LUPIN MARQUES LOUBACK
Primeiro homem trans do curso de Medicina da UEMS, interno do 6º ano, com história de atuação em medicina canábica e psicodélica, pesquisador em saúde mental indígena pelo grupo GEPSI, atuação como coordenador de diversidade e combate a opressão pelo DCE e conselheiro do CEPE, idealizador do projeto de ensino Diversidade na Universidade - DUn, atuação na linha de frente em ILPIs durante a COVID-19.
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